Métamorphoses conceptuelles dans la philosophie et la théologie de l’Antiquité tardive (Mini-curso).
De 10 a 12 de Setembro, de 16:30 – 19:00 h.
Anca Vasiliu, Centre Léon Robin / Centre National de la Recherche Scientifique (UMR 8061) / Paris (França)
I. "Exégèse et noétique. Philon d'Alexandrie à la croisée des traditions"
II. "Ousia et hupostasis. Perspectives métaphysiques et théologiques de Plotin à Boèce, en passant par Porphyre, Victorinus et Basile de Césarée"
III. "Périchorèse de la foi dans le De fide de Jean Damascène. L'hypostase des choses espérées"
-o-
O discurso apofático em Plotino e no pseudo-Dionísio Areopagita.
Bernardo Brandão, Professor da Universidade Federal do Paraná
A tradição do discurso apofático tem sua matriz no Parmênides de Platão, mas, aplicado ao Primeiro Princípio, se estabelece no medioplatonismo, aparecendo já de modo desenvolvido no Didascálicos de Alcínoo. O apofatismo se torna decisivo para a henologia das Enéadas, já que, para Plotino, o Um é indizível, podendo apenas ser conhecido por uma presença superior à ciência (katá parousían epistémes kréitona).
Entre os Padres cristãos, o discurso apofático se torna teologia negativa, o que se sistematiza na Teologia Mística do Pseudo-Dionísio Areopagita. Para construí-la, o Areopagita se fundamentou em autores neoplatônicos, especialmente em Proclo. Não podemos, contudo, supor que exista uma perfeita equivalência entre o apofatismo dos filósofos e a teologia dos cristãos, já que se trata aqui de discursos construídos em contextos diferentes com intenções diversas. Ao comparar o discurso apofático de Plotino com a teologia mística do pseudo-Dionísio, gostaria de investigar como se deu essa recepção, em suas semelhanças e diferenças.
-o-
O Logos e o Cristo: a perspectiva de Justino
Cézar Cardoso de Souza Neto, Pós-Doutorando; Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FDRP-USP)
A proposta que ora apresentamos parte da relevância da apropriação, a adaptação e ressignificação do conceito de Logos na formulação da dogmática cristã, a partir do contributo de São Justino.
Salientamos o período da Patrística – marcado pela estruturação da doutrina e pelo crescimento das comunidades através da atividade missionária dos fiéis, cumprindo o mandato de fazer discípulos por todas as nações da terra. Assim, constata-se a vocação do cristianismo de tornar-se uma religião universal, kathólikos, identificando-se com o paradigma da cosmópolis grega, encontrando um fator que possibilitou sua rápida difusão.
A expansão do cristianismo naquele mundo dominado pela cultura grega trouxe consigo a necessidade de oferecer a vida de seu fundador, Jesus de Nazaré, o Cristo, e de seus ensinamentos relatados nos Evangelhos. Para isso, fez-se necessária uma adaptação cultural àquela realidade. Os primeiros pensadores cristãos eram homens educados na paideiaclássica e que ao conhecerem o kerigma cristão e assumirem esta religião, começaram olongo processo de aproximação entre os conceitos cristãos e a filosofia clássica.
Buscamos analisar as relações interculturais entre cristianismo e cultura clássica para o desenvolvimento de uma identidade cristã e, objetivamente demonstrar como a filosofia grega tornou-se essencial para a formação da doutrina cristã, cerne da era Patrística.
Destacamos a contribuição inicial oferecida por Fílon de Alexandria que elaborou uma primeira aproximação entre as culturas grega e hebraica. Este autor empregou conceitos filosóficos em sua leitura das Escrituras ao associar o conceito grego de Logos como sombra de Deus: a ação, o pensamento, a vontade do Altíssimo, o modelo empregado na criação do ser humano. Desse modo, proporcionou um conjunto de elementos de suma importância para as reflexões dos primeiros teólogos cristãos.
Neste sentido, procuramos focalizar como São João apresenta em seu Evangelho o termo Logos: que existe desde o princípio e se revela ao mundo, deixando-se conhecer na pessoa do Cristo, a Palavra que se fez carne e habitou entre nós.
Conforme nossa proposta, queremos evidenciar como São Justino ressalta identificação entre o Cristo-Logos, consubstancial ao Pai – que integra em si a natureza humana e divina em uma só pessoa, no prólogo do Evangelho joanino. Para Justino, o Logos conhece todas as coisas, pois tudo que existe foi feito por meio dele e por sua palavra, converte e salva o pecador.
Concluímos ressaltando como Justino evidencia a importância dos pensadores gregos para o cristianismo, ao afirmar que todos que viveram corretamente, viveram de acordo com a verdade, mesmo antes da encarnação do Logos. Assim, os antigos filósofos, ao expressar em seus conhecimentos, fizeram resplandecer um traço da verdade, a razão seminal (ainda que fossem pagãos), tendo em vista a inspiração divina da revelação do Cristo, Logos do Pai.
-o-
A interpretação agostiniana das Categorias de Aristóteles em prol do dogma trinitário: uso ou abuso?
Cristiane Abbud Ayoub, Professora da Universidade Federal do ABC
No contexto das polêmicas sobre o dogma da Trindade que vigoraram nos séculos IV e V, Agostinho de Hipona (354-430) escreve seu De Trinitate. Neste tratado, o autor desenvolve diversos aspectos de sua filosofia, entre os quais defendemos que cabe um destaque à sua refinada crítica ao arianismo, desenvolvida através do debate sobre as categorias aristotélicas. Com efeito, os ataques dos arianos ao dogma trinitário valiam-se das categorias de Aristóteles. Agostinho, no entanto, empunha as mesmas armas, as categorias, mas sua argumentação leva ao oposto, a defesa da Trindade, e, consequentemente, serve como contrataque aos arianos. Em nossa exposição sobre essa questão, além de expor um breve contexto histórico, timidamente mencionado pelos especialistas, mostraremos que a argumentação de Agostinho pondera as categorias considerando três níveis de adequação da linguagem / pensamento (uerbum) com a realidade (res): a fala, o pensamento discursivo e a intuição da Verdade. Como conclusão, teceremos observações sobre a coerência entre as categorias da linguagem / pensamento (uerbum) e as realidades/coisas (rei).
-o-
A ideia de participação nos padres gregos: um estudo sobre como o conceito platônico influencia a discussão sobre a relação entre Graça e livre-arbítrio nos primeiros séculos do cristianismo.
Daniel da Costa, Doutorando em Filosofia da Universidade de São Paulo
Essa comunicação tem por objeto a ideia de Participação (méthexis) presente na filosofia platônica e em seus desdobramentos, e sua apropriação pela teologia grega dos séc. II e III. É marcante verificarmos que é apenas com Agostinho de Hipona, já no século V, que a discussão sobre a relação entre Graça e livre-arbítrio atinge seu auge; ao ser questionado sobre o papel do esforço humano na salvação, Agostinho deixaria claro que a eleição divina não se dá segundo nossos méritos, presentes ou futuros, de modo que a salvação ou a condenação do homem é objeto unicamente do inescrutável juízo divino. Ao colocar um grande peso sobre a ação da Graça, ele retirava qualquer iniciativa que o livre-arbítrio pudesse requerer e esvaziava a possibilidade de vida moral. Embora essa tese tenha causado estranhamento a um bom número de cristãos na época de Agostinho, por aparentemente anular a liberdade humana, suas conclusões foram incorporadas como doutrina oficial da igreja.
Quase três séculos de “filosofia cristã” já haviam corrido até Agostinho lidar com o problema da relação da Graça e do livre-arbítrio no contexto da eleição divina. Os padres gregos lidaram com o problema de um modo diferente, que, embora certamente tenha influenciado a posição agostiniana, impacta as conclusões de maneira indissolúvel. Nossa hipótese é de que, enquanto Agostinho lida com um forte conceito de Criação, evidenciado sobretudo por suas obras exegéticas, os padres gregos lidavam com um conceito ainda rarefeito, não obstante presente de modo contundente na Revelação, que ainda buscava encontrar suas raízes no pensamento metafísico. A ideia de Criação insere na história do homem uma proximidade ontológica com o nada (nihilo) que é reafirmada na Queda; neste contexto, a Graça é um dom indispensável e absoluto para que o homem possa almejar reconstruir sua relação com o divino. A ideia de Participação, por outro lado, retira o peso da história lapsária, de modo que a Graça possui um efeito “pedagógico” de recuperação da semelhança do homem com o divino.
Não há, entre os padres gregos, a necessidade de pautar o problema da relação entre Graça e livre-arbítrio porque a liberdade humana é considerada um reflexo, uma participação na liberdade divina.
Nosso objetivo será, portanto, o de defender a tese de que a ideia de Participação platônica influencia os padres gregos, de tal modo que a ideia de Criação ainda não reverbera todas as suas consequências ali, e que a não-problematização da relação entre Graça e livre-arbítrio é um efeito dessa influência. Para isto, analisaremos em especial as obras Adversus haereses de Irineu (Ca. 130-202) e De Principiis de Orígenes (Ca.185-253), tendo também, no horizonte, o debate agostiniano sobre o tema.
-o-
“Próximos da terra”: a releitura da noção de “carne” em Ireneu de Lião.
Edvaldo Antonio de Melo, Professor da Faculdade Dom Luciano Mendes – Faculdade Dom Luciano Mendes
A “carne” (σάρξ) e o “corpo” (σῶμα) sempre foram alvos de discussão desde as culturas mais antigas. Numa leitura atenta, verifica-se que já nos poemas de Homero usa-se o termo σάρξ em referimento à “carne” do corpo humano (Odisséia, XI, 217-222), diferindo-se da noção de “carne animal” que aparece em contexto de sacrifício. Ainda que em germes, não se pode negar a existência de elementos indicativos de uma “antropologia integral” também em Platão, conforme aparece no Timeu (74b, 82c, 84a) que menciona carne e ossos juntos, sugerindo um sentido orgânico do corpo estruturado e situado no grande universo cósmico da ética e da política.
Com a presente comunicação pretendemos investigar a origem e a natureza da noção de “carne” (σάρξ) na sua relação com o “corpo” (σῶμα) a partir da compreensão de Ireneu de Lião, em sua obra Contras as Heresias, tomando como comentário crítico a obra Dieu, la chair et l’autrede Emmanuel Falque, sobretudo o capítulo V, “La visibilité de la chair” que é uma tese pertencente à tradição judaico-cristã que, por sua vez, remonta ao neoplatonismo. Neste sentido, mesmo sem adentrar nas implicações propriamente teológicas da encarnação de um “Deus homem” que remonta aos primeiros séculos da era cristã, sobretudo a Ireneu, contexto no qual foi cunhada a expressão “encarnação” que vem do substantivo grego σάρκωσις– “[...] τὴν αἰτίαν ἀποδιδοὺς τῆς σαρκώσεως αὐτοῦ” (Contra as Heresias, III, 18,3) – é digno de consideração o próprio limite da linguagem em expressar, de modo especulativo, a realidade da criação e da encarnação do Verbo.
Seguindo Ireneu, assumimos a “carne” como lugar sem o qual não haveria salvação e a própria criação seria comprometida, pois estaríamos distantes de Adamah(terra). Neste sentido, entendemos a “carne” como uma “dobradiça” (charnière) entre a criação e a salvação. Trata-se de reler o Verbo encarnado “próximo da terra” e entender a “carne” não como um obstáculo, mas como “instrumento” sem o qual não haveria salvação.
Nossa comunicação pretende também investigar as influências do neoplatonismo em Ireneu que o faz aproximar o Demiurgo entendido como “artífice do universo”, na sua aproximação crítica com o Deus da concepção judaico-cristã que “modela” (plasma) Adão do barro, “símbolo” do Verbo encarnado no Cristianismo. Nossa conclusão tende a afirmar que a “carne” (caro) é o lugar da “glorificação de Deus no homem”. A partir desta afirmação, perguntamos se realidade do “Verbo que se fez Carne” – καὶ ὁ λόγος σάρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν – de João 1,14 que se encontra descrita em Ireneu, pode ser entendida como uma “filosofia da encarnação” na Patrística. Em que sentido o fenômeno do “Verbo feito carne” oferece elementos para se pensar no que mais tarde, sob o viés da fenomenologia passa-se a chamar “filosofia da encarnação”? Tais questões serão abordadas relacionando o pensamento de Ireneu de Lião na sua aproximação crítica com Platão.
-o-
Relatos da criação: polêmica e hermenêutica (séc. II-V).
Jacyntho Lins Brandão, Professor da Universidade Federal de Minas Gerais
O primeiro relato da criação do mundo, na Torah, foi objeto de disputa entre os comentadores judeus e cristãos durante os primeiros cinco séculos de nossa era, no contexto do Império Romano. A polêmica, contudo, nos dois casos, tem em vista principalmente os filósofos gregos que trataram da cosmogonia, em especial o Timeu de Platão e suas leituras médio e neoplatônicas. Pretendo concentrar-me nos dois primeiros versículos da Torah(na tradução da Bíbliade Jerusalém: “No princípio criou Elohim o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Elohim pairava sobre as águas”), examinando, em autores como Fílon de Alexandria, o Talmude, Basílio Magno e Agostinho de Hipona, os comentários e as interpretações propostas para entidades como “no princípio”, “céu”, “terra”, “vazia e vaga”, “abismo” e “águas”.
-o-
O cristão e o poeta: o fragmento de São Jerônimo sobre Lucrécio.
José Carlos Silva de Almeida, Professor de Filosofia da Universidade Federal do Ceará
As informações à nossa disposição sobre a biografia de Tito Lucrécio Caro são escassas e controversas: nada sabemos sobre o local do seu nascimento e sobre o seu ambiente formativo, nem encontramos dados que nos auxiliem no interior de sua obra, o poema De rerum natura, a ponto de podermos talvez dizer que ele, epicurista, se “esconde” dentro do texto, em conformidade com o preceito de Epicuro: “vive escondido” (lathé biôsas). A nossa fonte mais importante sobre a figura de Lucrécio é São Jerônimo (347-419 d.C.), que traduziu o Chronicon de Eusébio (260-339 d.C.), incorporando ao texto notícias sobre vários autores latinos extraídas do De poetisde Suetônio. No ano da 171ª Olimpíada, ou seja, no ano 94-93 a.C., ele informa que “nasce o poeta Tito Lucrécio, que posteriormente, enlouquecido pelo efeito de um filtro de amor, após ter escrito alguns livros nos intervalos de lucidez da loucura, que depois Cícero revisou para a publicação, se matou pelas próprias mãos na idade de 44 anos”. Procederemos na apresentação deste trabalho com o exame de cada um dos traços presentes no excerptum jeronimiano (cronologia, filtro de amor, loucura, suicídio, o papel de editor de Cícero), destinados a contribuir para a constituição da imagem de Lucrécio, nos séculos a seguir, como um poeta solitário, angustiado e maldito.
-o-
Proclo y Dionisio Areopagita: semejanzas desemejantes.
José María Nieva, Universidad Nacional de Tucumán (Argentina)
El objetivo de la presente comunicación es profundizar en la relación entre Proclo y Dionisio Areopagita a través de la noción de vínculos objetivos. Por estos hay que entender ciertos paralelos entre Proclo y el Areopagita que se imponen por sí mismos sin requerir el trasfondo de alguna interpretación doctrinal o de alguna hipótesis probable sobre la identidad del autor de los escritos que componen el Corpus Dionysiacum.
Estos vínculos objetivos pueden ser de dos clases: lingüísticos y estructurales. Los primeros tienen que ver con palabras o expresiones significativas que cobran igual relevancia en ambos pensadores. Los segundos, con el abordaje de determinados temas hasta tal punto que el modo de pensarlos estructura el pensamiento, es decir, los temas propios de una filosofía están en relación con su manera de pensarlos. Ello puede apreciarse, por ejemplo, en Sobre los nombres divinos 4, 18-35 donde Dionisio parafrasea prácticamente el De malorum subsistentia de Proclo.
La hipótesis interpretativa que se sostiene aquí es que ambas clases de vínculos pueden apreciarse también en el modo en el cual Dionisio Areopagita plantea su lectura de los símbolos bíblicos en los dos primeros capítulos de su obra Sobre la jerarquía celeste. En efecto, Dionisio no escribe como un cristiano separado del pensamiento pagano, más precisamente separado de la filosofía neoplatónica o como si fuera un pensador neoplatónico oculto detrás de una máscara cristiana. Expresado con otras palabras, no es posible comprender su hermenéutica de los símbolos bíblicos si no se presta atención al lenguaje del cual hace uso en dicha hermenéutica, y tal lenguaje tiene claras resonancias neoplatónicas, mejor dicho raíces neoplatónicas, lo que demanda además interrogarse acerca de la intertextualidad respecto de los escritos procleanos. El modo en el cual se sirve de los términos poikilía, parapestáma, mímesis, cheiragogía, así como de la expresión anomios homoiotes exige ponerlo en confrontación con aquellos. Precisamente la última expresión tiene su origen en Siriano, el maestro de Proclo, en su Comentario a la Metafísica de Aristóteles y su discípulo hace un buen uso de ella en su Comentario a la República de Platón cuando aborda la exégesis alegórica de los mitos platonicos, así como en su Comentario al Parménides para referirse a la materia como último eco de la procesión desde lo Uno. Tal expresión, por cierto, está presente en los dos capítulos de la obra dionisiana mencionada en íntima relación al modo en el cual los símbolos bíblicos se apoyan en lo material para manifestar la Providencia divina.
En consecuencia, es posible afirmar sin temor a equívocos que Dionisio lleva a cabo una relectura de la filosofía procleana en un contexto cristiano, o que hace uso de ella reapropiándose y resignificando algunos términos en aras de mostrar toda la riqueza noética del cristianismo.
-o-
Do Pórtico ao templo: a recepção do estoicismo pelos apologistas cristãos do segundo século.
José Marques, Doutorando em Filosofia da Universidade Federal do Ceará
Durante os dois primeiros séculos do cristianismo, os principais sistemas filosóficos oriundos da Grécia clássica ainda estavam em vigência, dentre eles, o aristotelismo, o platonismo e estoicismo. Tal fato possibilitou o intercâmbio entre as principais ideias e escolas filosóficas gregas e a doutrina cristã em seus primórdios. A expressão desse diálogo, encontra-se no trabalho desenvolvido pelos apologistas. Grosso modo, homem como Aristides,Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia e Justino, o Mártir, recorreram aos elementos da doutrina filosófica na elaboração de suas apologias.
A fecundidade do diálogo supracitado encontra-se na articulação feita pelos apologistas de conceitos oriundos do estoicismo. Neste sentido, a presente comunicação tenciona analisar alguns aspectos do encontro entre os teólogos cristãos e os pensadores do pórtico. Nosso recorte concentrar-se-á, sobretudo, nos conceitos de logos e providência, tão propalados pelo estoicismo. Seja expresso por meio de uma ética determinista ou por meio da doutrina da conflagração universal, a filosofia estoica afirma claramente uma espécie de providência no mundo. Exemplo evidente de apropriação dessa noção pelos apologistas encontra-se na discussão sobre a razoabilidade da ressurreição dos mortos feita por Atenágoras em seu Tratado sobre a ressurreição dos mortos. Em resposta ao problema: como seria possível a ressurreição de pessoas cujo corpo fora ingerido por animais ou até mesmo pessoas? Seria possível alguém ressuscitar no corpo de outrem? Para Atenágoras, em sua providência, Deus não permite que haja confusão de naturezas, assegurando com isso a integridade da ressurreição. O fato de Deus ter feito o homem para a eternidade também demonstra a sua providência. Ademais, o Deus que realiza a sua providência na criação, trazendo do nada a existência das coisas, é o mesmo que opera a ressurreição a partir de algo já existente. Vale ressaltar, não obstante, que, mesmo do conceito estoico de providência, os autores patrísticos tiveram o cuidado de retirar dele algumas consequências que pareciam contrariar a doutrina cristã. É que pode ser visto, por exemplo, na ressalva feita por Taciano no seu Discurso contra os gregos: “por isso, também acreditamos que acontecerá a ressurreição dos corpos depois da consumação do universo, não como dogmatizam os estoicos, segundo os quais as mesmas coisas nascem e perecem depois de determinados períodos cíclicos, sem utilidade nenhuma, mas de uma só vez”.
Outro conceito estoico do qual os pensadores cristãos se utilizaram em suas apologias foi a noção de logos. Frequente na tradição filosófica, pelo menos, desde Heráclito, esta concepção será marcante na filosofia estoica. De modo específico, é nesta escola que encontraremos pela primeira vez a noção de logos spermatikos(razão seminal), apontando para a semente divina presente em todas as coisas. Obviamente, dentre os apologistas do segundo século, aquele que melhor aprofundou o conceito do logos foi Justino Mártir. De fato, este pensador edificou o seu sistema teológico-filosófico tendo como base a doutrina do logos spermatikos. Em sua argumentação, Justino se utiliza desse conceito para justificar a existência de verdades em outros sistemas de pensamento anteriores ao cristianismo. Para ele, este fato, longe de contrariar a validade da doutrina cristã, expressa a relação entre o logos e a verdade.
-o-
Eternidade e presciência divina segundo Boécio.
Juvenal Savian Filho, Professor de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo
A solução de Boécio para o que ficou conhecido como "problema dos futuros contingentes" é tradicionalmente associada à sua concepção da eternidade divina como posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável. Tal concepção foi interpretada ao longo dos séculos como equivalente à afirmação de que Deus está para além do tempo (haja vista as posições de Abelardo, Tomás de Aquino e Leibniz, entre vários outros). Nos últimos anos, porém, o professor inglês John Marenbon tem proposto uma nova exegese da solução boeciana, defendendo que, para o pensador romano, Deus não está fora do tempo, mas "existe de certa maneira em todos os tempos". Parece, no entanto, possível problematizar a interpretação de Marenbon e ratificar a posição tradicional, não apenas pela retomada da concepção de eternidade como ser fora do tempo, mas sobretudo pela questão do papel da classificação dos tipos de conhecimento no livro V da Consolação da filosofia.
-o-
O Exercício da Morte (meléte thanatou) em Evágrio Pôntico.
Marcus Reis Pinheiro, Professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense
O exercício da morte (meléte thanátou) aparece em alguns textos ascéticos cristãos a partir do século IV d.C.. Nesse contexto, é uma tópica com características singulares, que repetiria e/ou alteraria traços presentes em outras tradições. Mesmo tendo o seu locus classicus no diálogo Fédon (63e-69e; 80e-81a) de Platão, são notórios os desenvolvimentos e utilizações deste exercício para além da Grécia Clássica, nas escolas helenísticas (como a epicurista, a estoica e a tradição neoplatônica) e em importantes teólogos patrísticos como Clemente de Alexandria (Stromates V, 11, 67), Gregório de Nazianzo (Discursos Teológicos I, 7 e Carta 31) e Máximo Confessor (Comentário ao Pai Nosso PG 90, 900A).
No contexto do movimento ascético-monástico egípcio, têm-se concomitantemente aspectos populares e não sistemáticos (tal como nas coletâneas de ditos e feitos dos Padres do Deserto, os Apophthegmata Patrum), quanto eruditos e de cunho mais teológico e especulativo. Como os segundos aspectos apresentam mais diretamente a influência filosófica grega, tratarei a tópica a partir de um único autor, Evágrio Pôntico (346-400 d.c.), origenista muito influente na tradição ascética cristã.
Até que ponto poderíamos dizer que as características platônicas deste exercício perduram, são rompidas ou recebem torções conceituais no movimento ascético-monástico? Podemos já indicar, por exemplo, que no Fédon, este exercício configura a própria definição do fazer filosófico. Mas, ao chegarmos aos primeiros textos da tradição ascético-monástica, parece claro que o exercício da morte adquire tons claramente inovadores frente ao mundo helênico, especialmente no que concerne ao aspecto escatológico e post-mortem.
Depois de apresentar brevemente o exercício da morte no diálogo Fedon, o objetivo aqui será descrever e analisar como o mesmo tema aprece em certos textos de Evágrio Pôntico: em especial, o Praktikós 29 e 52 e dois dos seus apoftegmas contidos nos Apophthegmata Patrum (neste caso, os apoftegmas 2 e 5 do livro III da coleção sistemática). Apesar de se poder encontrar tanto aspectos imaginativos quanto escatológicos, no Fédon há uma evidente descrição epistêmica deste exercício, pois se trata da alma afastar-se do corpo e reunir-se sobre si mesma com o claro objetivo de intelecção das ideias. Já em Evágrio, o meléte thanátouaparece com múltiplos aspectos, mas pode-se dizer que, de modo geral, ele é decisivamente um exercício de imaginação. Neste exercício – limitado às discussões da etapa ascética (praktiké) da sua obra e não da dimensão noética (gnostiké) –, certos aspectos da morte são trazidos à atenção (prosoché) do indivíduo para possibilitar uma disposição psíquica que o incite à vida virtuosa. Enquanto exercício de imaginação, podemos distinguir nele três aspectos fundamentais: 1) imaginar que a morte está iminente; 2) imaginar a deterioração do corpo; 3) imaginar o juízo final ou post-mortem.
Assim, defenderemos que a diferença crucial deste exercício no Fedon e em Evágrio seja o seguinte: no primeiro, a dimensão epistêmica é mais acentuada, e no segundo, tal exercício é definido em termos da fase ascética (não noética), sendo um exercício de imaginação auxiliar das virtudes.
-o-
Regio dissimilitudinis e oculi animae : dois exemplos de transmissão e re-significação do imaginário neoplatônico em Agostinho no livro VII das Confissões e em Guilherme de Saint-Thierry.
Massimo Pampaloni, Professor do Pontificio Istituto Orientale, Roma (Itália)
O intuito da conferência é o de mostrar o uso das expressões "regio dissimilitudinis" e "oculi animae" em Agostinho e em Guilherme de Saint-Thierry. Elas provêm sim do âmbito neoplatônico (Plotino e Filo de Alexandria), mas o uso que Agostinho e Guilherme fazem delas, não é uma simples recepção de conteúdos alheios; eles submetem os termos a uma ressignificação pelo horizonte bíblico e cristão. Isto representa um exemplo de descontinuidade-continuidade criativa da tradição filosófica precedente, que fica sempre viva e fecunda embora transitando em outro horizonte cultural.
-o-
Plotinus and Augustine on Beauty.
Maurizio Filippo Di Silva, Professor da Universidade Federal do Paraná
The aim of this paper is to examine whether and, if so, how far, the Augustinian notion of pulchrumis related to Plotinus’ concept of beauty, as it appears in Ennead I, 6 [1].
The Augustinian notion of beauty will be analyzed by focusing on the De natura boni, considering plurality and unity in Augustine’s identification of bonumand esse, both in their ontological and axiological dimensions. Topics selected for special consideration will be, first, beauty as outcome of modus, species and ordo naturalis (De nat. b., 14), and, secondly, corruptioas cause of deformitas (De nat. b., 15). The first part of the paper will attempt to explain the Augustinian identification of esse, bonum and pulchrum (De nat. b., 23).
The second part will analyze Plotinus’ notion of beauty, as spelled out in Ennead I, 6 [1], considering the Plotinian identity of to kalon and to agathon. Topics selected for analysis will be, first, the concept of form as cause of beauty (Enn. I, 6, 2-3), and secondly, the notion of to aischronas partial or absolute lack of form (Enn. I, 6, 2). The second part of the paper will attempt to explain Plotinus’ concept of good as yielding the nature of beauty through an analysis of Plotinus’ reflections on being and unity (Enn. I, 6, 2-3).
The third part of this paper will consider the differences between Augustine’s and Plotinus’ identity of ugliness and non-being, as related to the notion of matter. Topics selected for analysis will be, firstly, Plotinus’ identity of matter and to aischron (Enn. I, 6, 5-6), and, secondly, Augustine’s concept of matter as capacitas formarum (De nat. b.,18). The conclusion will bring out how Plotinus’ concept of matter as the ugly (Enn. I, 6, 6) shows a wide theoretical difference between Augustine’s and Plotinus’ ontological-axiological patterns.
-o-
Clemente de Alexandre e os Pré-Socráticos: temas e problemas.
Miriam Campolina Diniz Peixoto, Professora de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais
Clemente de Alexandria nos legou em suas obras um número expressivo de fragmentos e comentários acerca das ideias filosóficas dos primeiros séculos da história da filosofia grega antiga. Em obras como os Stromateis e o Protrético, preocupado em indicar qual deveria ser a atitude do cristianismo em face da filosofia grega, ele passa em revista algumas teses dos filósofos pré-socráticos, principalmente aquelas que mais diretamente se encontravam relacionadas com suas opiniões sobre Deus e sobre a natureza humana. Às opiniões dos filósofos, ele contrapõe citações da Sagrada Escritura, acenando para a superioridade da segunda em relação às primeiras. Interessa-lhe mostrar os limites da Filosofia em suas "tentativas de alcançar a verdade", como vemos, por exemplo, neste passo do Protrético: "Percorramos ainda, se vocês quiserem, as opiniões que os filósofos se vangloriam de ter sobre os deuses; talvez venhamos a descobrir que a própria filosofia teve a presunção de tomar a matéria por ídolo, ou bem poderemos estabelecer, de passagem, que divinizando alguns fenômenos maravilhosos, ela entrevia, como num sonho, a verdade." (Protrético, 64, 1). Não obstante o fato de reconhecer os seus limites, ele admitirá, diferentemente do que parece que pensavam alguns de seus contemporâneos, que a filosofia é uma "obra da providência divina": "existem outros que consideram que a filosofia tenha entrado na vida para a infelicidade e para a perdição dos homens" (Stromateis, I, 1, 12-13). Em nossa comunicação pretendemos identificar as alusões às teses dos Pré-Socráticos na obra de Clemente e examinar as eventuais citações, concentrando nossa atenção principalmente em sua interpretação dos pensamentos dos Pitagóricos, de Heráclito e de Demócrito.
-o-
Criação ex-nihilo, de impossível a possível: Melisso entre Parmênides e Agostinho.
Nicola Stefano Galgano, Pós-doutorando da Universidade de São Paulo
A criação do mundo ex-nihilo é um topos comum da patrística que não tem correspondente no pensamento grego arcaico e clássico. Sem considerar a mitologia, ao menos desde Heráclito (fr. DK B 30) a ideia da perene existência do mundo pertence ao pensamento grego daquelas épocas e dentro dela são desenvolvidas as mais várias cosmologias, desde Anaximandro até Aristóteles. Aparentemente, no mundo do pensamento cristão, o primeiro a falar em creatio ex nihilomais explicitamente é o autor do Pastor de Hermas no século II d.C.. O tema é depois retomado de várias maneiras por autores como Justino, Teófilo e Irineu, mas é em Agostinho que encontra uma articulação mais complexa e filosófica. Das várias passagens em sua obra onde o tema é tocado, considerarei apenas o De natura boni, onde Agostinho discute não só propriamente a criação ex nihilo, mas também parcialmente a própria noção de nihil.
A discussão agostiniana se detém em mostrar que a noção de nihilnão que se referir a alguma coisa, sugerindo que deve ser compreendido como um nihilabsoluto. Todavia, penso que a condição de não ser absoluto não parece corresponder à descrição ali apresentada. Nessa passagem – afora a influência platônica evidente e forte que, não é aqui levada em conta – é possível mostrar uma grande semelhança com a noção apresentada por Melisso, que curiosamente é aquele que expõe um princípio oposto àquele agostiniano. De fato, o eleata diz (DK B 1): “Nenhuma coisa pode ser gerada do nada”, ex nihilo nihil.
Tanto Melisso quanto Agostinho, apesar de chegar a conclusões diferentes e opostas – o primeiro conclui que nada (do mundo) vem do nada, enquanto o segundo que tudo (do mundo), através de Deus, vem do nada – possuem em comum uma violação ao princípio di Parmênides. Este, o primeiro a falar do nada, ou como ele preferia, do não ser, adverte que não se pode pensar e nem dizer o não ser e, por conseguinte, o não ser não deve ser usado no discurso epistêmico, pois ele é fruto de um pensar desviado pela conduta do pensamento comum (doxa). Em outras palavras, Parmênides afirma que o não ser é uma noção sem sentido, fruto de uma falta de recursos da mente humana. Essa doutrina do não ser é elaborada ao longo do poema, mas a afirmação explícita da proibição do uso dessa noção no que concerne a geração e a corrupção se encontra em DK B 8.7-8: “[que o eonseja gerado] não permitirei que tu digas e penses que seja do não ente”.
O artigo pretende mostrar que a proposta de Parmênides não foi aceita desde Melisso, o qual de certa forma hipostasia a noção parmenidiana e dá início a uma noção emparentada com o zero matemático, uma noção que permitirá a forma argumentativa de Agostinho. O artigo discutirá primeiramente as passagens de Agostinho e Parmênides e finalmente mostrará o parentesco das noções de Agostinho e Melisso.
-o-
A recepção do modo de vida vegetariano segundo fontes platônicas na obra de Clemente de Alexandria.
Pedro Ribeiro Martins, Professor de Língua e Literatura Grega da Universidade Federal do Rio de Janeiro
O fenômeno do vegetarianismo na antiguidade, termo usado para referir-se a uma abstinência voluntária de animais fundamentada em uma argumentação ética, religiosa ou de visão de mundo, proporcionou um autêntico debate tanto entre defensores deste estilo de vida, como Porfírio de Tiro e Plutarco, quanto entre os que desenvolveram argumentos contra a abstinência de carne, como representantes dos estoicos, epicuristas, peripatéticos e ate mesmo Heráclides Pôntico, contemporâneo de Platão e membro de sua Academia (De Abstinentia 1.4-26). Com base na leitura da obra De Abstinentia (DA) de Porfírio pode-se afirmar que a discussão sobre o consumo de carne perpassa temas decisivos não só para os filósofos platônicos, como também para os primeiros teólogos da igreja. O primeiro livro da referida obra é dedicado à temperança e ao auto-controle (DA 1.26-57), o segundo à uma teoria do sacrifício silencioso e interno do logos em lugar da oferenda animal (DA 2.34) e o terceiro disserta sobre a importância da extensão da justiça a todos os seres como método de assimilação ao deus (τὸ γὰρ θεῷ ὅμοιον - DA 3.27.6). Ademais, esta obra contém argumentações em torno do modo de vida vegetariano de filósofos como Xenócrates, Heráclides Pôntico e Teofrasto. No livro Der Vegetarismus in der Antike im Streitgespräch (2017), foi discutida a relação do fragmento do De Pietate de Teofrasto transmitido por Porfírio com o fragmento Contra Vegetarianos, cuja autoria Porfírio confere a Heráclides Pôntico e ao desconhecido Cláudio de Nápoles (DA 1.26.4). Desta análise, prevaleceu a conclusão de que um tratado refere-se ao outro em termos argumentativos, sugerindo uma discussão sobre o papel da alimentação animal dentro da Academia de Platão e do Liceu aristotélico. Por sua vez, o sexto livro dos Stromateis de Clemente de Alexandria contém igualmente uma análise dos costumes sacrificiais pagãos. Neste contexto, são discutidos os tratados Sobre a alimentação animal (Περὶ τῆς ἀπὸ τῶν ζῴων τροφῆς) de Xenócrates e Sobre a vida segundo a Natureza (Περὶ τοῦ κατὰ φύσιν βίου) de Polemon (Stromateis. 7.6.32.9). Clemente sugere que, nestes escritos, estaria contido o argumento que a carne faz mal ao corpo porque, ao consumir a carne animal, a alma humana se rebaixaria à alma dos animais irracionais (ἡ διὰ τῶν σαρκῶν τροφή, <ἣ> εἰργασμένη ἤδη καὶ ἐξομοιοῖ ταῖς τῶν ἀλόγων ψυχαῖς). Nesta comunicação, pretendo traçar a importância da discussão sobre a abstinência de carne entre os membros da escola platônica acima citados para o estabelecimento das práticas ascéticas presentes na obra de Clemente de Alexandria.
-o-
Transposição da transmigração na psicologia de Orígenes.
Rubens Garcia Nunes Sobrinho, Professor da Universidade Federal de Uberlândia
Além de ter um papel fundador na consolidação da teologia cristã, Orígenes é considerado por muitos eruditos, junto com Agostinho, como sendo o maior filósofo cristão da antiguidade. Imerso no ambiente do médio-platonismo, Orígenes adota uma posição ambivalente em relação à psicologia platônica, particularmente no que concerne à transmigração das almas. Crítico implacável da metempsycosis pitagórica e da transmigração em outros corpos, metemsōmatōsis, Orígenes desenvolve uma sofisticada psicologia e antropologia segundo as quais o homem é um composto unitário de corpo, alma e espírito (pneuma). Todavia, Orígenes postula uma complexa gradação em todas as instâncias deste composto: tanto a natureza somática como a alma são complexos e consonantes com a aproximação do Logos divino. A despeito de sua crítica à metemsōmatōsis, Orígenes pressupõe a preexistência da alma, a pluralidade de mundos e uma ascensão da condição carnal até a beatitude angélica. Todavia, ao mesmo tempo em que supera a tripartição psíquica platônica, Orígenes desenvolve a cosmologia platônica de modo a conciliá-la com a mensagem cristã e com o advento da encarnação de Cristo. A sua complexa psicologia e antropologia fundamentam os conflitos morais da natureza humana, a epistemologia e a origem do mal. E, assim como Platão, Orígenes insere essa psicologia em uma cosmologia unificadora, na qual a transformação psíquica se harmoniza com a transformação somática no âmbito da pluralidade de mundos, que configura a história cósmica da alma na grande síntese da salvação. Esta história tem início em uma existência prévia na qual, em função de certas causas e do livre-arbítrio, a alma contrai alguma medida de culpa que a degrada e afasta de Deus. Nesta magnificente história da queda e ascensão da alma até a natureza angélica, Orígenes nega a incorporeidade da alma: o cosmo existe em uma hierarquia ascendente de imaterialidade que culmina em Deus. Tanto o corpo como a alma admitem um continuumde refinamento até que o homem seja governado inteiramente pelo pneuma. A história da ascensão espiritual humana contém todos os elementos daquilo que se pode identificar como transmigração. O objetivo deste estudo consiste em apresentar uma interpretação segundo a qual, em vez de romper e negar o médio-platonismo do primeiro século, Orígenes o transpõe, criando novas categorias compatíveis com a Cristologia, notadamente a de que o homem é uma trindade corpo-alma-espírito, cuja natureza é condicionada tanto por seu livre-arbítrio como pelo destino de sua aproximação com o Logos.
-o-