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Marcelo Marques

        "Pensar, para Platão, não consiste em partir desta folha singular inicial e afastar-se dela, através de progressivas separações, perdendo em vigor e efetividade, para culminar com uma pálida imagem mental ou com o conceito de folha, sem alma e sem o dinamismo da inteligência viva. Pelo contrário, nos diálogos platônicos, pensar significa partir da limitação, do impasse e da contradição (da folha que é e não é aquilo que ela é), e avançar na direção da construção de uma rede dinâmica de diferenças que permitam vislumbrar cada vez mais inteligibilidade, se possível, alguma identidade e, certamente, alguma transformação. Pensar tendo no horizonte a forma inteligível é processo, movimento e transmutação, em resposta à exigência incessante de cada vez mais inteligibilidade. A forma platônica não é conceito, nem mero evento psicológico ou arcabouço mental. Ela é figuração posta e reformulada sucessivamente, ao longo do caminho da pesquisa; ela é percurso e horizonte de (in)visibilidade. Pensar através das formas não significa substituir objetos ou eventos por sucessivas abstrações, mas exige que, perante o precário e o imperfeito, postulemos um rumo (paradigma) e construamos argumentativamente o caminho naquela direção. Esta é aé filosofia que encontramos nos diálogos: a percepção das coisas como problemas exige que busquemos cada vez mais inteligibilidade, mais clareza, através de novas mediações, o que acaba por conferir ao objeto da inteligência o máximo de dignidade. Pensar é inserir o que quer que seja na dinâmica do perguntar e responder, que acaba por constituir um ritmo, um modo de compreender e também propor patamares de compreensão dos quais se podem vislumbrar objetos e eventos, coisas e processos, poderes e ações visados no modo de ser que são os seus, quaisquer que sejam. É a complexidade do dialogar que restitui cada coisa ao seu âmbito devido e justo (inclusive esta folha, na sua tangibilidade), atravessando aparições e impasses. Nada substitui a singularidade ou a diversidade dos seres visíveis, não é esta a pretensão do recurso à forma inteligível. Pelo contrário, sua posição libera o falar e o escrever para a singularidade do encontro dialógico, de modo que assumam plenamente suas limitações e possibilidades (esta folha singela percebida e talvez pensada). O pensar tem que ser livre, ou seja, digno e senhor de si mesmo. Ele tem que ter o lazer necessário para desdobrar-se em seu dinamismo próprio; só assim ele poderá iluminar seus objetos, permitindo-nos reconhecê-los, principalmente, nas suas diferenças. É neste sentido que compreendo que pensar é pensar a diferença. No caso do Sofista, nem tanto a diferença entre o visível e o inteligível, mas a diferença no plano mesmo do inteligível."'

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Marques, M. P. Platão, pensador da diferença. Uma leitura do Sofista. Coleçao "Humanitas". Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 14-15.

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